sábado, 7 de julho de 2007

A angústia do tempo que passa

I
Do passado, do presente e do futuro. As incertezas do corpo que se ama, do carinho que se deseja, do amor que se esbanja. Uma vida de família que se constrói, que se consolida ou se desvincula, que se amplia, se engrandece ou se vai desvanecendo.
A tua vida terá sido algo de diferente de muitas outras pessoas.
Muitos de teus anseios terão sido desenvolvidos através de uma infância, ainda que aparentemente cheia, plena de evasivas, de insatisfação, de invejas inconscientes e inconsequentes. Muitos dos teus sentimentos mais naturais terão estiolado antes de se manifestarem. Muitos de teus vazios terão sido preenchidos com as vivências dos outros, com o amor vivido por outros, que não sentido e vivido por ti. Talvez não ames verdadeiramente ninguém. E, no entanto, acreditas no teu pretenso amor ... mas pelo amor dos outros. Talvez mesmo tivesses desenvolvido uma espécie de anticorpos sentimentais face aos sentimentos que os que te foram rodeando ao longo da vida te dedicaram. E incluso o desejo do amor físico e as primeiras experiências tenham sido uma violentação procurada deliberadamente. Não com o intuito da procura e da entrega ao amor, mas antes com o intuito de o usares porque tinhas direito a ele.
Habituaste-te a servir-te do mundo e das pessoas. E na verdade nunca traçaste verdadeiros objectivos para a tua vida, em todos os sentidos.
Uma mãe autoritária a quem não terás reconhecido o direito de substituir o pai perdido, aliado a uma vida que cedo quiseste auto-suficiente, terão determinado uma conduta autónoma, afirmada por um carácter extrovertido que não representava, no entanto, nem espontaneidade nem confiança absoluta em quem te quisesse amar.
Agrestes foram sendo teus sentimentos. Sem entrega total. E a tua vida, aquilo que afinal consideras a tua verdadeira vida, parece ter ficado no passado de uma juventude em que, por isso mesmo, não implicava decisões, tomadas de posição, responsabilidade, perante ti mesma e perante os teus familiares e amigos. Tudo se passou afinal duma forma simples, imediata. E chegada a uma idade avançada, ao olhares para trás, tens a sensação de que afinal nunca viveste em pleno. Foste sempre uma infeliz porque ninguém se preocupou verdadeiramente contigo. Mas será que te entregaste o suficiente a alguém, de coração aberto, para que esse alguém te possa ter assumido e ser assumido por ti? Será que alguma vez amaste de verdade alguém ou alguma coisa? Será que alguma vez definiste objectivos concretos para a tua própria vida? .
Para ti, amiga, a vida não deve ter sido fácil. Acredito. E agora é certamente tarde para voltar atrás ou para corrigir o que quer que seja.
Sempre te quis compreender. Talvez sempre te tivesse querido ajudar. Mas estou em crer que, talvez inconscientemente, é verdade, tu nunca tivesses admitido a ajuda de ninguém. Quando tu mais precisavas não tiveste lá ninguém ... Nem a tua família mais próxima. E depois, mais tarde, foste couraçando teus sentimentos. Incluso o desejo de prazer ter-se-á confundido com algo, senão proibido, pelo menos muito longínquo e pouco acessível. Por isso ainda agora a tua entrega, a tua amizade, o teu amor tem de ser procurado e proporcionado ou promovido pelos que te rodeiam. Chegas a dar-te duma forma real, mas para isso tem de ser outrem a construir o que deveria ser a tua entrega. Tem que elaborar e fazer desabrochar o teu amor ou a tua amizade. São os outros que têm de mendigar o teu carinho. Ser amigo ou amar alguém é para ti uma condescendência. Dito por outras palavras: Amar não é para ti querer o bem-estar do outro, mas sim o teu bem-estar. A amizade não é um sentimento teu para com alguém mas um sentimento de alguém para contigo. Claro que apesar de estar a comentar o teu comportamento não quer dizer que ele seja teu monopólio.. Afinal quantos de nós não amam os outros só enquanto eles podem retribuir esse amor. A amizade resulta interesseira e o amor, levado ao seu extremo, um erro com consequências nefastas. Mas deixa que te diga que gosto de ti, apesar de tudo. Como justificaria o ter vivido tantos anos a teu lado, Sofridos, muito sofridos podes crer, mas com bastantes momentos de alegria. O quadro psicológico. que procurei elaborar permitiu-me compreender a frigidez, a tua reduzida motivação para o prazer. Ou antes. Só muito esporadicamente tomavas a iniciativa dos jogos do amor, e fazia-lo quase a medo. Mas num casal não está determinado de forma alguma quem deve tomar a iniciativa. Talvez fosse fruto de uma educação, ou da interpretação de um processo educacional que afinal não existiu duma forma natural. Habituaram-te a repudiar as mulheres daquela rua que ali estavam á disposição dos soldados. Não chegaste sequer a ter tempo de te aperceberes, ainda que ás escondidas, dos momentos de amor de teus pais. E depois teus colegas permitiam-se, e mais do que se permitiam vangloriavam-se de comportamentos nessa área que não correspondiam á realidade.
O que terás aprendido sobre teu corpo e sobre sexo terá sido através do que ouvias, e das colecções de fotografias e revistas pornográficas que, apesar do cuidado de teus colegas em não te mostrarem por te acharem pouco crescida para aqueles assuntos, te achaste no direito de apreciar. O sexo terá assim tido para ti uma conotação meio duvidosa no que toca a sentimentos, afectos e carinhos. Terá estado mais provavelmente ligado a determinados actos apressados no vão de uma escada ou no elevador. Determinadas acções ou posições despidas de entrega de corpo e alma, de abandono ás carícias, ao prazer assumido e mutuamente consentido. Tua própria sensibilidade terá sido coarctada nessa área por falta de um aprendizado de contactos, pele com pele, apalpar, beijar, sentir no momento próprio, ir aprendendo a vibrar, a ser afecto a ser corpo sensível com vontade de prazer, de carinho, de orgasmo. Depois, quando te encontrei, já a culpa será minha em não ter conseguido proporcionar-te um desenvolvimento mais eficaz desses teus sentimentos inacabados, incompletos. Em também ter tido receio de melindrar essa tua vergonha, esse teu insatisfeito corpo, essa falha de maturação sensorial ou inacabado desenvolvimento da sensualidade. E hoje talvez me apetecesse chorar contigo quando não te compreendem e se negam a aceitar as consequências dessa realidade.
Podemos sentir-nos realizados. Uma família. Uma educação honesta dos filhos. O seu respeito a sua amizade e compreensão. Mas tu nunca te sentiste realizada. Sei-o por ti.. Nunca te entregaste totalmente a nada nem a ninguém. Nunca quiseste definir para ti mesma o que pretendias da vida. E quando não se têm objectivos nada do que se alcance tem verdadeiro sentido. Estaremos sempre insatisfeitos. Nunca nos sentiremos realizados, é verdade. Essa é certamente a condição do próprio ser humano!... Mas nós estamos lá para vivermos essa busca. Ainda hoje sonhas uma juventude de que na altura te julgavas eterna dona, de uma vida independente, inconsequente e irresponsável, onde tudo parecia controlado ou consideravas tudo controlar. Só que a vida pregou-te uma partida. Ou não pregou e tu é que quiseste dispor dela, da vida, conforme achavas ser teu direito...

II
Deparei contigo, casualmente, naquele Encontro. O teu cabelo comprido, a barba, o ar longínquo. Não sei bem porquê começámos por nos telefonar. Longas conversas que se tornaram motivo de pequenas piadas lá em casa. Pedias-me para te resolver alguns problemas como comprar-te este ou aquele objecto pessoal que te entregava quando nos encontrávamos no teu apartamento. Depois foste almoçar lá a casa, "apresentei-te" á família num ambiente algo tenso mas logo te aceitaram. Fomos juntos a várias festas. Dançámos, rebolámo-nos, á noite, na areia da praia deserta, à luz da lua. Amámo-nos e casámo-nos.
E á tarde uma festa simples. Fomos viver para o teu apartamento, dois quartos e uma sala, com um simples colchão na alcatifa a servir de cama. E começámos a viver certinho. Quem diria que a poucos meses de te conhecer, já estava casada. Sentia-me feliz. Empregos suficientes e minimamente seguros. Mas sempre quis muito mais. Sempre achei que tinha direito a muito mais.
Não sei. Nem sempre era fácil entregar-me ao amor. E gostava de fazer amor contigo. Mas tinhas qualquer coisa de misterioso, de inexplicável. Uma forma de estares na vida que não me parecia totalmente transparente. Admirava-te. Os teus conhecimentos, o teu autodomínio, a tua presença sempre tão respeitada pelos outros, quase receosos de que lhes pudesses desmascarar a. incompetência, as limitações culturais e intelectuais. Dominavas a palavra e eu admirava-te. Mas talvez por isso mesmo, não queria reconhecer essa tua superioridade e fui-me couraçando, mesmo ferindo-te - hoje reconheço-o - para me defender.
Fui procurando avassalar-te com a minha presença. Queria-te perto de mim pois tinha receio de te perder. E não era difícil com tantas amizades à tua volta, com tanta mulher que também te admirava e provavelmente também te desejava.
Nunca cheguei a saber se depois de casado te entregaste a alguma delas. E ficava fula quando me dizias que se acontecesse fazeres amor com certas mulheres tuas amigas não me estarias a ser infiel. Porque algumas eram especiais e a "dádiva dos corpos" ás vezes é o prolongamento natural de um momento muito forte de "simbiose afectiva". Ainda hoje creio que nunca o tenhas feito, ou quero acreditar que assim tenha sido.
(Extracto adaptado pelo autor do seu livro "Abisag, @ sunamita”)
Yves Junior

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